A JANELA DE ALICE


Miriane Willers

Assim como Quintana, escrevo diante da janela aberta. Sempre em busca de novas descobertas.
Da minha janela observo pequenos recortes de mundo. A rua quase deserta. A janela fechada da casa em frente, com seus moradores ainda dormindo. São apenas 9h de um sábado. Quem pode, aproveita para descansar um pouco mais. Exceto eu, com minhas inquietações e a vizinha ao lado, que acena, saudando minha curiosidade ao se dirigir para a padaria. Observo o pé de buganvília, florindo ostensivamente, com suas flores pequenas, envolvidas por três brácteas rosas, rosa choque, que me atravessam com intensidade. Queria tanto tocá-las, sentir sua textura. Vejo uma formiga que passeia na vidraça, arteira e deslumbrada. Miudezas que passam despercebidas, mas são desinquietas, crivadas de vida.
Sei que em outras tantas janelas mundanas não há essa singeleza e tranquilidade. Aquelas com grades, nos depósitos de gente, sem liberdade. As que dão para becos, lixeiras, homens e animais, disputando coisas, pedaços, restos para amenizar a fome. Há ainda, meros rombos, aberturas cinzas, estilhaçadas pelas armas e bombardeios, dor, sofrimento, gritos, conflitos, disputas de poder. Tudo o que se vê são as feridas da guerra.
Janelas sempre me fascinaram. Abertas ou fechadas. Amarelas, azuis, cor-de-terra, cor-de-folha. Ou de cor nenhuma. Já foram símbolo de riqueza: quanto mais janelas na casa, mais tributos o dono pagava. E hoje, ainda há quem tenha uma só janela para chamar de sua e milhares que não as têm, nem mesmo casa.
– Menina, sai da janela, deixe os outros em paz – ainda ouço minha mãe gritar. O tempo passou, transformou dias em meses, anos em despedidas e ainda continuo observando a vida lá fora. Tão mais interessante!
Janelas podem revelar ou esconder. Espelhar céu, pássaros, nuvem, o campo, os caminhos, pessoas diferentes, com pressa ou distraídas. Crianças correndo, adolescentes no skate, os carros, os operários na construção lá na frente. Mostrar o mar, o vento, a sensação de caminhar na areia. Podem disfarçar o som do tapa, o choro, a discussão, até o estampido, que silencia o que antes era amor.
Para mim, nos finais de semana, é o jornal também espécie de claraboia. Ao abri-lo, além de amenidades, moda, dicas de filmes, gastronomia e diversão, vejo casa sem energia elétrica, após o temporal ou por mera omissão do Estado. Explosão em Moscou, terrorismo e mortes. Fico sabendo – mas não sinto na pele – que são mais de 256 mil gaúchos a partir dos 15 anos que não têm acesso à palavra impressa, à letra, ao verbo, à leitura. Mostra o banho de floresta, o contato com as árvores – poderoso ansiolítico e antidepressivo. Preocupação com a dengue, água parada; despreocupação com a miséria, a desigualdade, a natureza. Crimes, violência, professora assassinada, latrocínio, acidentes nas estradas. Por favor, feche essa janela!
Minha janela preferida, preciso confessar, é bem pequena, embora esconda e desvele a grandeza do universo. A própria humanidade. O livro. Portal mágico por onde atravesso, viajante do tempo, mil personagens, guerreira, protagonista. Caminho, corro, minhas pernas têm força, meus pés têm vida e agilidade, não tenho rodas. Papiro, pergaminhos, folhas de papel, telas digitais. Palavras, carne, força e sentimento! Livros e escrita: simbiose que me mantém viva, pulsante, resiliente, visível, normal.
Da minha janela, me deparo com a realidade, reparo na vida. Existo, resisto com livros, muitos livros nas mãos. Dessa abertura, fenda, rasgo no espaço, meu coração ganha asas, e voa não sei pra onde. Livre, ensolarado, repleto de miúdas belezas, apesar do mundo insano. Apesar da invisibilidade. Apesar do medo.

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Miriane Willers

E-mail: mirianew@yahoo.com.br

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